Plebiscito do Chile
Faltavam 72 horas para a votação do plebiscito.
Nesse dia, como de costume, eu deveria ajudar na limpeza do hostel pela manhã. Banheiros, terraço e escadas. Como o trabalho não era tão pesado e eu tinha cinco horas para terminá-lo, decidi escutar alguns videos de YouTube sobre a derrocada da União Soviética, a falácia de fim da história e uma série de assuntos que incluíam termos da ciência política completamente desconhecidos a mim. Mas isso não me importava muito. Eu buscava muito mais uma voz que me acompanhasse na faxina do que uma compreensão profunda dos dilemas comunistas.
Assim que terminei o trabalho, um pouco depois das 13hs, peguei uma sacola de compras para ir ao mercado. No balcão de recepção, havia uma calorosa reunião de funcionários e a porta de entrada do hostel estava fechada por uma larga barra de ferro. O porteiro tirou-a da frente, abriu a porta e, assim que eu dei um passo em direção a calçada, disse-me "tenha cuidado, fechando a folha de madeira atrás de mim. Alguns jovens, com idade entre 15 e 19 anos, reuniam-se na praça do outro lado da rua. Vestidos inteiramente de preto, já haviam pixado a fachada do hostel com palavras de ordem e símbolos anarquistas. Eu fiquei parado, somente observando a movimentação. No Brasil ou no Chile, era sabido que os anarquistas usavam da violência, mas me parecia um exagero que o hostel fizesse todo aquele alarde travando a porta com uma barra de ferro. Eu caminhava em direção a um quiosque que ficava logo na esquina seguinte, quando uma viatura da polícia virou a rua e parou no farol alguns metros a minha frente. Como num estalo, aquele grupo de jovens anarquistas correu em direção a viatura lançando pedras e pedaços de pau. Nenhum deles vinha em minha direção, mas a explosão repentina de violência foi o suficiente para me assustar. Virei as costas e, sem pensar duas vezes, corri de volta para o hostel. Toquei a companhia duas vezes antes que me abrissem.
O lado de dentro era uma fortaleza, na qual a única preocupação coletiva era falar mal dos que estavam lá fora e espalhar um temor generalizado sobre o que ocorreria até domingo, o dia da votação da nova constituição chilena.Eu estava decidido a não sair mais do hostel esse dia. Peguei minha mochila e subi para o terraço pronto para me afundar nos meus livros. Sobre a mureta do terraço, eu podia ver a praça do outro lado da rua. O grupo de jovens já havia se dissipado e outras pessoas caminhavam normalmente pelas calçadas. Ora, eu não podia ficar ali no alto daquela torre de marfim com medo de pisar na rua.
Deixei minha mochila no quarto, peguei a câmera fotográfica e saí novamente do hostel. Caminhava sem rumo. Não havia nada de estranho. Os comércios funcionavam normalmente, os turistas compravam lembrancinha para a familia comprometendo o décimo terceiro. Andei algumas quadras até me deparar com um palco enorme, montado sobre andaimes no meio de uma das principais avenidas de Santiago. Fariam um show em favor da nova constituição, me contaram, começaria dali a pouco mais de uma hora. Saquei minha camera e comecei a fazer retratos. A luz amarelada do fim do dia dava a tudo um brilho especial. Eu tinha cada vez mais dificuldades de me deslocar, pois o número de pessoas aumentava conforme aproximava-se o início da apresentação. Quando os primeiros acordes soaram no palco, eu estava justamente na lateral daquela estrutura de andaimes coberta por um pano preto. Não havia nenhuma possibilidade de ver o que se passava no palco. A rua estava tomada por militantes do 'apruebo". Era gente a perder de vista e eu mal podia mexer meus braços. Mas não deixava de ser emocionante ver todos all cantando a plenos pulmões as músicas mais conhecidas no Chile. Eu nunca havia estado numa manifestação tão grande em que a arte ocupava um papel tão central na mobilização das pessoas. Não demorou muito para que os militantes a minha volta começassem a gritar "abaixem a cortina, abaixem a cortina" em referência ao pano preto que nos impedia de ver o palco. Ninguém da produção parecia nos escutar. Em meio aos cantos de "apruebo, apruebo", aqueles manifestantes não desistiam de pedir a retirada da cortina. Num dado momento, o apresentador que todo de branco parecia uma espécie de Roberto Carlos chileno foi a beira do palco e olhou em nossa direção. "Querem que tirem a cortina?" As pessoas agitaram as bandeiras com maior intensidade. Um homem da organização começou a desatar os nós. Alguém do palco o chamou. Voltou a ficar parado ao lado da cortina. Esperava provavelmente uma ordem superior para saber se podia continuar a operação. Aquela burocracia interminável para algo tão simples matava de impaciência qualquer multidão. Algum manifestante que estava na rua escalou alguns andaimes e arrancou a cortina. A alegria foi generalizada. A partir daí, tudo seguia mais ou menos parecido. Os manifestantes respondiam entusiasmados a cada ação vinda do palco e eu tentava vez ou outra fazer uma foto de alguém ao meu lado. Só a luz da tarde que caía deixando o céu cada vez mais escuro. Quando um grupo de garotas atrás de mim resolveu ir embora, pareceu-me uma boa oportunidade de atravessar a multidão acompanhado. Eu seguia por último naquela fila que mais parecia uma agulha tentando perfurar o tronco de uma árvore. Atravessamos a avenida em direção a uma praça sem que a densidade de corpos diminuisse. O fluxo de gente querendo passar aumentara, mas a saída já estava completamente congestionada. Era impossivel avançar ou recuar. Um grupo de pessoas atrás de mim começou a empurrar. Minha barriga colou na pessoa da frente e alguém atrás de mim pressionava as minhas costas. Eu já fazia parte de um único corpo gigantesco de chilenos e chilenas que não podiam definir sozinhos para onde seriam levados. Um balanço desgovernado me fazia ir da esquerda para a direita sem avançar um único passo. Agarrei com a mão esquerda num pé de sustentação de uma tenda azul, em cujo interior vendiam doces e salgados. "A mesa, cuidado com a mesa" berrava uma mulher a cada vez que alguém encostava no tampo, sobre o qual havia bolo, cachorro-quente e comidas típicas do Chile. Aqueles gritos evidentemente não adiantavam de nada. Tratava-se de uma multidão surda e incontrolável. Empurravam cada vez com mais força e o movimento tornava-se cada vez mais intenso. Quando me dei conta, era o meu joelho que esbarrava contra a mesa da senhora. Bastaria uma chacoalhada mais forte e eu cairia sobre todas aquelas comidas.
Era preciso seguir contracorrente. Virei no sentido contrário, segurei firme a camera na mão direita e com meu ombro esquerdo tentava abrir espaço entre os outros corpos. Era possível avançar pouco a pouco. Cada vez mais, eu encontrava espaço para me mover. Assim que voltei ao hostel, fui até o subsolo na sala mais tranquila que encontrei para descarregar as fotos e fazer algumas anotações. Meu celular apitou: um brasileiro havia tentado matar a Cristina Kirchner. Entrei num looping sem fim de vídeos, fotografias e reportagens. O que mais podia acontecer nesse mundo? Decidi que era hora de tomar um banho e dormir. Enquanto eu subia as escadas para ir ao quarto, cruzei com P., um jovem galego de barba escura e fala arrastada. "Onde você estava? Te procurei por toda parte. Santiago está pegando fogo". Ele e S. - um húngaro que chegará há poucas horas da paradisíaca Ilha de Páscoa - me esperavam para caminhar algumas quadras e ver como estava a situação. Já deviam passar das 23:30hs quando saí pela terceira vez do hostel. Bastou virar a esquina a mesma onde pela manhã os anarquistas haviam atacado a viatura policial - para ver pedaços de plástico queimando e estilhaços de vidro no chão. O conflito já havia diminuido e uma enorme quantidade de pessoas caminhavam pela avenida, saindo do show que eu havia ido a tarde. O palco estava vazio com as luzes todas apagadas. No entorno, dezenas de vendedores e centenas de manifestantes seguiam reunidos. O ambiente não estava hostil, mas era certamente muito diferente daquele que eu havia encontrado pela tarde. Um cheiro de bomba de gás lacrimogêneo se mantinha no ar por algumas quadras. Atrás do palco, um homem-banda batia o tambor, acionava o prato de metal e assoprava uma gaita enquanto o público dançava e batia palma no ritmo da música. Era incrivel a capacidade da arte, da política e da violência se mesclarem tão facilmente.
Já haviamos cruzado o Palacio de la Moneda quando P. engatou numa conversa com um indigena mapuche, cujo conteúdo eu era incapaz de entender. Eu e S. julgamos que era hora de voltar. Nós três nos despediamos daquele senhor. Ele apertou a minha mão e proferiu ofensas ao Neymar em mapudungun, a sua lingua nativa. Em seguida, repetiu três vezes o nome do Ronaldinho e sorriu. No trajeto de volta ao hostel, inúmeras pessoas caminhavam a nossa volta num quase absoluto silêncio. A essa altura, todos só conseguiam pensar: "Domingo será maior, domingo vai ser impressionante".