Geografia do esquecimento

Já devia passar das 12hs e uma sensação abafada tomava conta do quarto. Filtrados pelas cortinas, os raios de sol entravam com diferentes cores. Bastou abrir os olhos para que eu sentisse as veias da minha cabeça pulsando no mesmo ritmo. Voltei a fechá-los, pois a luz me doía ainda mais as têmporas. 

 
As paisagens secas do Atacama surgiam desordenadamente na minha mente. Me lembrava das cadeias de montanhas de pedra cercadas por amplos vales igualmente secos. Não havia ali qualquer tipo de planta ou animal. Nem mesmo aves cruzavam o céu azul. Era tudo minério, nas suas diferentes formas e composições. À exceção de uma autopista negra que cruzava o vale em linha reta, o bege amarelado prevalecia em toda a paisagem.

Os fragmentos de imagens se aceleravam e cadenciavam nos meus pensamentos: os desertos ondulados, as marcas de pneu na areia, os pequenos ratinhos que invadiam o hostel e a noite estrelada.

Alguém entrou no quarto, deixando entrar pela porta raios de luz que queimavam meus olhos através das pálpebras fechadas. A pessoa se aproximou da minha cama, enquanto eu permanecia imóvel com a cabeça virada para a parede. Há duas noites eu estava naquela mesma posição quando senti algo rossar no meu pulso direito. Abri os olhos e ali estava um pequeno bichinho de pelos cinzas e bigodes longos. Seu rabo rosado era pelo menos duas vezes mais comprido que o corpo. A menos de dez centímetros do meu rosto, pude ver com extrema clareza seus olhos negros e redondos encarando diretamente os meus olhos enormes e azuis. Não senti repulsa ou pavor, mas já não havia qualquer possibilidade de eu voltar a dormir naquela noite. Assim, coloquei o casaco e saí do quarto. 

Do lado de fora, a lua cheia iluminava tudo num tom azul prateado. Mesmo com todas as luzes elétricas apagadas, era fácil enxergar o que havia a minha volta. No céu, a lua formava um halo, onfuscando as estrelas a sua volta. Mas bastava desviar meu olhar em alguns centímetros para perceber as dezenas, talvez centenas, de pontos brancos bilhando em diferentes intensidades.

Na cabeceira da minha cama, alguém havia deixado um copo de água gelada, onde mergulharam um pequeno ramo de rica-rica. Tomei um gole sem levantar a cabeça do travesseiro.

Pelo estreito vale de montanhas, corria um riacho, em cujas margens cresciam árvores e arbustos e por onde voavam pequenos pássaros. A vida naquele oásis cercado por cerros alaranjados era delimitada numa faixa de poucos metros de largura. Numa curva do rio, formava-se uma represa, onde era possível me banhar. Mergulhei meus pés na água gelada enquanto o sol pegava na minha nuca.

O deserto do Atacama não parece fazer parte do tempo humano. As paisagens antes da criação da vida talvez não fossem muito diferentes daquilo que eu vira por ali. Da mesma forma, depois que o ser humano e algumas espécies de plantas e animais deixarem de existir, as paisagens tampouco se modificarão muito. As luzes das estrelas atravessam o Espaço - algumas durante oito anos e outras durante dezoito mil anos - antes de tocarem as areias do deserto, onde se concentram camadas de tempo. E neste encontro temporal que desenha a paisagem, 1973 segue arrastando-se num insuperável passado chileno. Toda noite, a luz da lua que ilumina o quintal do hostel também alcança os vestígios dos desaparecidos na ditadura.

Tomei mais um gole d'água, enquanto a cabeça continuava a girar. O dia prometia ser longo. Tinha só mais meia hora antes de começar o meu turno: arrumar as camas, limpar os banheiros e varrer a areia que dia após dia se acumula no batente de cada porta. 
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