O encontro com a baleia
Vasculhando no buraco negro da galeria de imagens do meu celular, revejo as primeiras fotos que tenho salvas – feitas durante minha última estadia em Santiago, exatamente no dia 25 de setembro de 2018. Com um aparelho antigo, registrei uma exposição sobre vida marinha que visitara no Centro Cultural La Moneda. Em três fotos, é possível ver as ossadas de uma baleia jubarte. Na última imagem, uma litografia de uma cena de caça de baleia, contornada por representações de crustáceos e moluscos.
Meses mais tarde, mostrei essas mesmas imagens a um pescador que conheci em alguma praia brasileira. “Não tenho dúvida de que essa é a baleia que eu pesquei anos atrás. Com vara e anzol". O homem mantinha os olhos fixos à tela do meu celular para tentar ver cada detalhe da foto enquanto seguíamos conversando.
Num dia qualquer, após parar seu pequeno bote em alto mar e lançar o anzol na água a espera de algum peixe, sentiu a linha da vara tremer mais forte e a puxou. O corpo de trinta toneladas da baleia jubarte saltou para fora da água caindo diretamente no seu pequeno bote. “Pode acreditar”, dizia ele sorrindo, “é verdade o que eu te falo”. O pescador imediatamente acionou o motor do barco e levou a baleia para sua casa. Tratou de conseguir uma montanha de krill para alimentá-la e, a cada hora do dia, molhava a baleia com água salgada para que não desidratasse. Em toda a sua vida, ele nunca vira nada tão lindo. Aqueles olhos enormes, a pele macia e sempre gelada. Nos dias que se sucederam, o pescador deixou de ir trabalhar e faltou a compromissos sociais para ficar mais tempo com a baleia. Ela, por sua vez, havia sido pescada porque perdera-se da sua rota natural. E que diferença fazia estar perdida na terra ou no oceano? Ali, naquela pequena casa do pescador, tudo era novidade. Havia cores que nunca tinha visto embaixo d’água e cheiros que jamais sentira antes.
Mas não demorou nem duas semanas até que o pescador percebesse que o chão da casa cedia alguns centímetros a cada dia. A estrutura não aguentava as trinta toneladas do corpo da baleia. O pescador não teve dúvida. Chamou diversos engenheiros da região e juntou todas as suas economias afim de reforçar o que fosse necessário para manter a baleia em sua casa. Mas não tinha jeito. A casa já era muito antiga e o solo de areia, de tão macio que era, exigia fundações mais largas e mais profundas.
O pescador, de coração partido, foi contar-lhe a notícia: ela não podia mais ficar ali. Seria preciso voltar para o oceano. A baleia já sabia, era evidente, que passara tempo demais ali. Baleias jubartes são por natureza animais migrantes, que podem percorrer vinte e cinco mil quilômetros em um ano. E ela já havia passado três semanas ali, naquela casa, dedicando-se a prazerosa tarefa amar e ser amada.
Na manhã seguinte, os dois entraram no pequeno bote e foram juntos a alto mar. Quando o continente já se transformara numa estreita linha horizontal, o pescador aproximou seu rosto do olho direito da baleia a ponto que a visão dos dois amantes se desfocasse por completo. Bastou inclinar o corpo levemente para trás para que a baleia saltasse do barco, sumindo nas águas escura com a mesma velocidade com que aparecera semanas atrás. As ondulações do mar causadas pelo mergulho da baleia foram diminuindo até que não houvesse mais nenhum resquício de sua passagem por ali. E o pescador – sentado no seu bote em alto mar – encontrava-se sozinho como já estivera tantas outras vezes. “Quem sabe um dia nos encontraremos”. Foi essa a frase final de despedida. Era uma frase tão vaga para quem havia vivido por três semanas com uma baleia jubarte que o homem sentia o peito contrairde dor e angústia.
O tempo passou sem que o pescador tivesse qualquer notícia a respeito. Quando eu mostrei-lhe as fotos, prometi que se retornasse a Santiago iria em busca de mais informações, para saber o que havia se passado com a baleia entre a sua despedida e a exibição da sua ossada. Quatro anos depois, voltei a cidade chilena, mas sem muito sucesso nas minhas investigações. Os relatos que consegui eram vagos e contraditórios. Alguns disseram que ela foi pega por um navio pesqueiro anos depois, quando ia em direção ao sul do Chile. Outros contaram que ela havia falecido ao ficar encalhada numa praia brasileira. Seja como seja, os cientistas ainda seguem em seu laboratórios, buscando respostas claras para o funcionamento do mundo.