Para me proteger dos carros que passavam na estrada, cruzei para o outro lado da proteção metálica que divide o acostamento de uma faixa de terra. Caminhava por um chão batido de terra alaranjada, entre tufos de mato seco e arbustos espinhosos. À minha esquerda, a estrada de asfalto serpenteava pela cadeia de montanhas secas e rochosas. As únicas árvores que nasciam por ali concentravam-se nas margens de um pequeno riacho que corria pelo vale, à direita. Aquela água devia sair de um dique que, segundo me contaram, havia sido construído na região há mais de vinte anos. O sol já estava a pino e os carros passavam do meu lado interrompendo o silêncio da paisagem inóspita e deslumbrante.
A estrada tornava-se uma subida cada vez mais acentuada. Olhando para cima, podia ver que o asfalto desenhava quatro curvas seguidas, como dois "S" conectados. Em vez de seguir pela estrada, decidi cortar caminho subindo diretamente por uma alta e larga estrutura de degraus de concreto, provavelmente construída para concentrar o escoamento da água. O degrau chegava quase à minha cintura. Apoiei a sola do meu pé direito. Assim que dei o impulso com a perna esquerda, senti meu joelho fazer toda a força. Talvez fosse melhor seguir pelo barranco, logo ao lado. A cada passo que eu dava, ouvia as pequenas pedras rolando ladeira abaixo. O suor molhava minha testa. Detive-me por um instante e levantei a cabeça. Ainda faltava metade da subida. Mas, afinal, o que eu estava fazendo no meio daquela estrada qualquer? Parecia que nada que eu pudesse encontrar por ali justificaria o esforço. Eu não via mais ninguém além dos motoristas, cujos rostos, mesmo passando velozmente, demonstravam reprovação com a minha peregrinação sem sentido. “Mais um turista que se acha super-herói”, deviam pensar alguns. “Esse aí deve ser um desocupado mesmo". Cogitei voltar, mas já fazia uma hora que tinha deixado o povoado de Cacheutta para trás e talvez fosse mais complicado voltar do que seguir adiante. Poderia também pedir carona até algum ponto à frente, mas teria que dar demasiadas explicações sobre como cheguei ali e até onde eu pensava em caminhar. Quando terminei de subir o barranco e encontrei novamente o asfalto do acostamento, vi que a estrada, ao final de algumas curvas, seguia por um túnel.
A última vez que eu havia atravessado um túnel a pé tinha sido com meu primo, depois de assistir a um jogo de futebol na cidade de Santos. A partida tinha sido bastante movimentada e um gol nos últimos minutos nos encheu de tamanha alegria que decidimos ir caminhando do estádio até a rodoviária, onde tomaríamos o ônibus das 23hs de volta para São Paulo. Compramos um sanduíche cada um e saímos andando. Bastava caminhar algumas quadras pela avenida, cruzar o túnel e já veríamos o terminal de ônibus. A calçada larga e iluminada ao lado da avenida transformava-se, no interior do túnel, numa passarela estreita com um guarda-corpo metálico à nossa esquerda. Pela largura, não podíamos caminhar lado a lado, o que fez com que meu primo seguisse alguns passos atrás de mim. Além disso, era impossível conversar, pois o barulho dos carros era alto demais e ecoava na espessa abóboda de concreto. Andávamos a passo acelerado. Porém, antes mesmo de chegarmos à metade do túnel, pude ver alguém caminhando na outra ponta da passarela, vindo em nossa direção. As luzes do farol impossibilitavam ver o rosto do desconhecido. Não comentei nada com meu primo, mas era provável que ele também já o tivesse visto. Sentia medo assim como eu? Tentei me apegar à ideia de que talvez o homem estivesse na mesma situação que nós. Ou ainda pior, já que éramos dois. Ninguém alterou o ritmo dos passos. Quando já estávamos a poucos metros um do outro, abaixei a cabeça e desloquei o corpo para lhe dar passagem. “Você tem dinheiro para eu comer alguma a coisa?” Era um homem barbudo de feições mais velhas. Vestia uma jaqueta azul e calça jeans. “Dinheiro?”, perguntou meu primo para confirmar o que o homem havia dito. O barulho dos carros dificultava a conversa. O homem assentiu. Nada nele indicava ser capaz de algum tipo de violência. Seus olhos, que brilhavam e se apagavam com os faróis dos carros, centraram-se em mim com uma expressão indagatória. Eu tinha dinheiro suficiente para a passagem de ônibus e mais quatro ou cinco refeições. Com as duas mãos no bolso da calça, tentei separar uma nota de vinte reais enquanto buscava disfarçar aquele bolinho de cédulas. Com a luz baixa do túnel, era muito complicado diferenciar uma nota da outra. Assim que consegui identificar e puxar aquele pedaço de papel amarelo, tive uma sensação de que eu devia explicações. Ficara evidente que eu tentara esconder dele o dinheiro que eu tinha. “Você sabe como é... é para a passagem. Além disso, não jantamos e a viagem é longa.” A minha fala só tornou a situação mais embaraçosa. Meu primo me observava sem saber como intervir. O homem não disse nada. Apenas deu uma risada antes de agarrar a nota e ir embora.
Era nisso que eu pensava enquanto entrava sozinho neste outro túnel a caminho de Potrerillos. No seu interior, a sombra e a temperatura amena eram um grande alívio. As luzes amarelas no teto permitiam enxergar toda a sua extensão. Pelo outro lado, na saída do túnel, entrava uma luz branca, bastante forte, que se atenuava aos poucos conforme eu me aproximava. Assim, aquela concentração total de luzes foi dando lugar a diferentes tonalidades de azul e de amarelo. Nos últimos metros dentro do túnel, já pude enxergar a paisagem que surgia: sobre a pista escura de asfalto, a água azul-turquesa do dique - ao mesmo tempo opaca e brilhante - separava-se do céu por uma cadeia de montanhas. Ainda no final do inverno, elas estavam cobertas no topo por uma capa de neve.
A paisagem era bastante diferente do que eu esperava. Por uma estúpida associação de palavras, eu imaginara o dique como uma grande piscina rodeada por deques de madeira. Eu não tinha refletido sobre essa imagem, mas ela havia me ocupado silenciosamente até chegar ali. A paisagem real era muitíssimo mais impressionante, mas não aliviava o cansaço de seguir caminhando pelo acostamento. Abri a mochila para pegar a garrafa d'água: um livro de 600 páginas, dois cadernos e uma porção de lápis. Eu tinha deixado a garrafa e as frutas na cozinha do hostel. Não pude acreditar em tamanha estupidez.
Onde a faixa de terra ao lado do acostamento se abria em espaços amplos, os motoristas estacionavam seus carros para tirar fotos do dique. Por quase uma hora, eu andei com aquela imensidão de água à minha direita, a qual parecia uma superfície sólida que emitia luz e cor próprias. Minhas pernas moviam-se quase automaticamente, como se eu já tivesse interiorizado o esforço que precisava fazer. Na outra extremidade do dique, a estrada desembocava numa rotatória de três vias. Uma placa de sinalização indicava os destinos pela via da esquerda: Potrerillos; Uspallata; Rep. do Chile. Segui por essa rota. Com as montanhas nevadas à minha frente e o dique atrás de mim, os acostamentos nesse trecho eram delimitados em ambos os lados por paredões rochosos que certamente formavam uma mesma montanha antes de ser dinamitada. Naquele momento, eu andava onde antes era somente um corpo de minério duro e vermelho. Há quantos milhões, talvez bilhões, de anos aquela montanha estivera ali sem a existência de homo sapiens, neanderthais ou australopitecos? O ser humano era como um acaso passageiro na vida daquela montanha, mas que, pelo ímpeto exploratório, dinamitou o seu interior.
Potrerillos não estava distante. Eu já podia ver as suas casas no alto de uma colina. Na beira da estrada começaram a aparecer os primeiros estabelecimentos do povoado: um posto de gasolina YPF e um centro de informações turísticas. As casas eram bonitas e as ruas de paralelepípedo, largas e arborizadas, mas eu não tinha força nem disposição para continuar a andar. Fui até o ponto de ônibus, sentei no banco e abri meu caderno.